domingo, 24 de junho de 2018

As Cocadas Cora Coralina



Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira
à moda do tempo.

Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre
e ralado o coco. Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a
escumação da calda até a apuração do ponto. Vi quando foi batida e
estendida na tábua, vi quando foi cortada em losangos.

Saiu uma cocada morena, de ponto brando atravessada de paus de
canela cheirosa. O coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou
excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais
numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da
prateleira.

Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada
oito, dez, mesmo. Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De
noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas
piruetas na minha frente. Sempre eu estava por ali perto, ajudando
nas quitandas, esperando, aguando e de olho na terrina.

Batia os ovos, segurava gamela, untava as formas, arrumava nas
assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado
almofariz de bronze.

Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para
bater um pão-de-ló. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina,
botou em cima da mesa, deslembrada do seu conteúdo. Levantou a
tampa e só fez: Hiiii...

Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda
e despejou de uma vez a terrina.
As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de
paus de canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda
mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta,
macia e aveludada de bolor.

Aí minha prima chamou o cachorro: Trovador... Trovador... e veio
o Trovador, um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido,
abanando a cauda. Farejou os doces sem interesse e passou a lamber,
assim de lado, com o maior pouco caso.

Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas.

Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta
– má e dolorida - de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e
cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas
com o cachorro.

Conto Cora Coralina, in: Conto com você – vol 2 – coleção Literatura em minha Casa, São Paulo, Editora Global, 2003 (PNBE 2003

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